Aprofundar a cidadania
A cidadania é um direito primordial e um dever fundamental em democracia. É que a liberdade dos cidadãos só ganha sentido quando se completa com a sua participação empenhada na resolução dos principais problemas que se colocam à sociedade. Por outro lado, uma democracia moderna só encontra a sua legitimidade autêntica quando entre os cidadãos e a sua representação institucional se estabelece uma interacção dinâmica permanente, responsável e consequente.
Como escreve o conhecido filósofo José Gil, “se a liberdade é o máximo possível da expressão, em sociedade, das múltiplas liberdades e direitos democráticos no campo social, não se pode, hoje, dissociar direitos democráticos e direitos de cidadania. A cidadania política, que engloba as eleições livres como o direito universal de escolher os seus representantes, não se concebe sem os direitos sociais, iguais para todos – direitos à educação, à saúde e todo o tipo de serviços sociais”.
A democracia é, hoje, a via única do futuro e a cidadania a sua referência sinalizadora, ou seja, da forma como a cidadania for exercida dependerá a qualidade da democracia. Mas a sua prática mistura-se, no dia-a-dia, com as mentalidades e as realidades sociais, e nessa relação reside o seu principal problema. E, infelizmente, onde o progresso é menor é onde a democracia e a cidadania menos são vividas e praticadas, e, por isso mesmo, onde a mudança é mais necessária é onde há menos vontade, ou mais incapacidade, de a promover. Sequelas de uma cultura rural tradicionalista onde o participação cívica, a iniciativa individual, o espírito crítico ou a reivindicação legítima colidem, ainda, com mentalidades ancestrais feitas de inibições individuais e colectivas, receios inconscientes, respeito temeroso, reverência tímida ou passividade submissa. Heranças de décadas de ideologia política em que tudo o que acontecia era determinado de cima, a ordem e a obediência eram os valores centrais e a sociedade uma totalidade orgânica onde os cidadãos quase não existiam. Reflexos, enfim, de dogmatismos, preconceitos, moralismos, complexos e medos que condicionam a expressão da liberdade, bloqueiam o conhecimento, confundem e dividem as pessoas, desvalorizam o papel do cidadão e bloqueiam o progresso e o desenvolvimento.
O atraso social e económico e o alheamento cívico são por isso duas faces da mesma moeda, podendo afirmar-se que a ausência de cidadania é o mecanismo ideal de reprodução das desigualdades sociais e regionais, porque quanto menos se conhecerem os direitos menos uso deles se fará. Ao invés, quanto melhor se entender o funcionamento da democracia, quanto mais partilhado for o seu conhecimento, quanto mais a sua prática se desenvolver, mais probabilidades existirão de participar no desenvolvimento do país. É que o baixo nível de consciência de alguns no exercício activo dos seus direitos de cidadania permite aos governos que esqueçam ou adiem a resolução dos seus problemas em proveito de outros que os exercem de forma mais reivindicativa, o que leva José Gil a concluir que “é, no fundo da nossa ignorância que geralmente nascem os problemas”. Por isso nunca será de mais afirmar que a cidadania é realmente a chave do desenvolvimento.
O apelo à tomada de consciência dos cidadãos para os seus direitos de cidadania é hoje um dos principais desafios que se colocam ao futuro das regiões mais desfavorecidas do país. A criação de espaços públicos de discussão livre e construtiva dos problemas e de aprofundamento prático da democracia constitui um indispensável aliado de uma política consequente de progresso económico, social e cultural virada para as necessidades concretas das populações. Isto não significa, como alguns pretendem fazer ver, aumentar a conflitualidade, mas, ao invés, criar diferenças nos consensos que conduzam à formação de comunidades mais coesas, mais solidárias e mais fortes. De outra forma, ainda que se verifiquem algumas melhorias infraestruturais básicas, a vida nunca será mais que uma «não-existência».
Monteiro Valente