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domingo, abril 07, 2013

O Emílio foi a enterrar no dia de Páscoa


Sábado à noite, depois da tarde passada com familiares dos dois lados da fronteira, após o almoço anual da Família Barroco, o Francisco Beirão telefonou-me a anunciar a morte do Emílio. O funeral seria no domingo, às 16H00. Em Badamalos, naturalmente, onde vivia desde o regresso de Angola na leva de retornados.

Há mais de um ano que não via o meu afilhado, um amigo mais velho que me quis para padrinho do casamento com a Justina, faria 50 anos em setembro próximo. Na véspera, o Mário Bárbara, do meu curso de professor, que por ali se fixou a dar aulas a garotos, quando os havia, e a beber uns copos, que ainda há, já me tinha alertado para o fim que se aproximava quando ocasionalmente nos encontrámos em Almeida.

A doença que soe ser longa foi para o Emílio breve, abrir e fechar a cavidade abdominal donde as metástases já haviam migrado para órgãos nobres. Antes isso, que o declínio e o sofrimento podem ser um refrigério para a alma mas desolam o próprio e os amigos. 

Lembrei-me dos tempos de criança e da forma como os mais velhos me estimavam. Foi com o Sérgio, primo e também afilhado de casamento, que padeceu do mesmo mal e foi a enterrar no dia 7 de outubro de 2012, também num dia de chuva, que aprendi a beber vinho e a fumar. A esse tratava-o por professor. O Emílio era um dos garotos nascidos no primeiro lustro da década de trinta do século que foi, na Miuzela do Côa. Com eles aprendi a amar a noite e a liberdade, tropeçando nas ruas enlameadas na escuridão das noites sem lua, a gritar obscenidades, quando caía, para parecer adulto. Foi com eles, jovens inteligentes que fizeram a 4.ª classe, por não poderem ir mais além, que aprendi o que a escola e a família não ensinam.

O Emílio morreu mesmo na Páscoa cristã, a coincidir com o mito, a despedir-se da vida no fim da sexta-feira e a ser inumado no domingo, ao fim do dia, por entre a chuva fria e o vento forte que fustigava a multidão de amigos que ali foram despedir-se.

Quando cheguei a Badamalos, ido de Almeida, parei junto do restaurante que fora dele. Bem sabia que estava fechado. Fora ali que fizera pela vida, deixando a Justina a tomar conta quando um freguês solicitava o táxi. Olhei com saudade a casa onde me acolhia com imensa amizade e desvelo, servindo-me os melhores petiscos e fazendo questão de abrir velhas garrafas de vinhos de marca. Depois fui àquela velha igreja onde há quase 50 anos o sacristão insistiu em vão para que o padrinho se ajoelhasse junto à madrinha, a Augustinha.

Também choveu no dia do casamento. O fatinho era novo e único, poupado para dias de festa, que 1750$00 de vencimento ilíquido, reduzidos a 1612$00, não consentiam maior  guarda-roupa. Tive o azar da chuva. Nunca mais a esqueci nem o afilhado deixou que a esquecesse.

Depois da missa, nada se fazia sem ela, foi servido o almoço onde os padrinhos tinham lugar de destaque. Tudo correu bem. A felicidade dos noivos era o reverso do rosto da Justina e dos três filhos que tiveram neste domingo, último dia do mês de março.

A chuva do funeral tornou mais lúgubre a despedida. A do casamento foi uma bênção para o fígado. O senhor padrinho tinha os sapatos rotos e a chuva transformou as ruas de Badamalos num lamaçal que foi preciso atravessar até ao salão de baile, esmeradamente lavado e seco. Mandava a tradição que os senhores padrinhos abrissem o baile ainda que algum não soubesse dar um único passo de dança. E era o caso.

Partiram os padrinhos de mão dada para o centro do salão perante os olhares e a pressa dos jovens que pretendiam divertir-se. Mal avançaram os senhores padrinhos, pegadas de tamanho desigual iam alternado no imaculado chão, esfregado durante dias, perante a estupefação, primeiro, e sonoras gargalhadas, depois, com a miséria posta à mostra pelas meias encharcadas que saíam dos buracos dos sapatos do padrinho. Com a calma que a situação recomendava, levantei os pés, alternadamente, exibi os buracos e absolvi a madrinha envergonhada, enquanto chamei todos para a dança.

Foi o momento hilariante que divertiu a Miuzela e Badamalos, que foi contado imensas vezes e todos os anos recordado sempre que eu aparecia. Que diferença entre o percalço de sapatos rotos, que meias solas remendavam, e meias molhadas, que logo secariam, e um funeral de um amigo que deixa viúva, filhos e amigos já sem lágrimas para chorar enquanto a chuva teimosamente nos acompanhou ao cemitério onde já poucos faltam de uma geração que desaparece e de aldeias que vão, também elas, morrendo com os seus últimos habitantes.

A morte é a vida que atingiu o prazo. Emílio Correia Júlio, nascido a 9 de maio de 1935, partiu no dia Páscoa de 2013. Faz-me falta e é mais um que me deixa. Raio de vida.