...com alma, com gentes, com sabores, com sensações, com saudades...

quarta-feira, abril 30, 2008

O caminho-de-ferro da minha infância

(Foto enviada por David Alexandre)
Da estação da Guarda, às 13H02, sai o comboio que, após 43 minutos, à tabela, mostra os belos azulejos da estação de Vilar Formoso, povoação onde a Europa começa a ser Portugal e donde, em tempos de emigração maciça, se procuravam trilhos próximos que permitissem o salto para França na fuga à miséria e à polícia.

Na última sexta-feira de Março viajei nesse comboio repetindo um trajecto habitual da infância e da juventude, arquivadas ainda na memória as curvas dos carris e a orografia do terreno que os bordeja.

As casas parecem-me agora mais pequenas porque os olhos já não vêem como então e a escala decerto se alterou. As pessoas, não as que conheci, mas outras que as deviam ter substituído, sumiram-se com o tempo ou, naturalmente, refugiaram-se noutras paragens.

As terras ficaram, não conseguiram fugir das pedras que as prendem para não abalarem, fazendo-se ao caminho como as pessoas que lhes davam vida. Estão agora mais secos os pastos e abandonados os campos. Nos meus tempos de criança havia gente em todo o lado, pessoas que se reconheciam à vista desarmada, animais que obedeciam à voz do dono, vizinhos a quem recorrer em momentos de aflição ou necessidade.

Agora é o silêncio a pontuar a linha do horizonte, algumas gestas a romper por entre as pedras, um ou outro pinheiro onde ia jurar que houve castanheiros e carvalhos, silvas onde já vicejou o milho e donde desapareceram os tojos e o rosmaninho.

Gata, Vila Garcia, Vila Fernando e segui o rio Noémi, a ribeira da minha infância, com o olhar ansioso de quem escava a memória à procura de recordações. A ribeira levava paradas as águas neste princípio da Primavera, alheia ao equinócio recente e à morte que lhe levou os peixes e as redes. Tentei ouvir a água que saltava as penedias e polia as pedras mas a janela devolvia-me silêncio. Tentei com a porta aberta, depois do Rochoso e da Cerdeira, na Miuzela e no apeadeiro do Noémi. O silêncio mantinha-se e a água cristalina que quis recordar foi substituída por um líquido espesso, de cor baça, à espera de dias de canícula que o capturam em charcos, primeiro, e o secam a seguir.

Onde havia poldras há agora pontões. Outrora ficavam submersas aquelas, durante as chuvas, agora servem os últimos para evitar o declive do leito esculpido pelas águas.

Na Miuzela ainda vi a veiga que foi dos meus avós, nesga de terra donde desapareceu a nogueira e que, decerto, já não produz batatas. Estava abandonada, não sei se tem dono, préstimo já não tem com certeza. Estas tiras de terra, junto à ribeira, alimentavam gente ou talvez fossem as pessoas que ali se consumiam lentamente na ilusão de que eram os campos que as sustentavam.

Os amieiros não tinham folhas, por ser tempo da caducidade ou por mor de moléstia que lhes deu, não sei dizer, talvez aquele líquido que escorre os tenha condenado, mas ainda se perfilam nas duas margens a indicar o trajecto quando, daqui a uns dias ou meses, a água ou o que quer que a substituiu de todo se evaporar.

Os moinhos desmoronaram-se por falta de serventia. Minguou-lhes o grão e o moleiro, faltou-lhes a água que fazia rodar as mós, e foram ruindo tombados pelos anos e pelo abandono.

Os lanchais a perder de vista têm hoje as gestas que os padeiros da Miuzela e os oleiros da Malhada Sorda não deixavam crescer. E desapareceram as hortas. Não foram para as sepulturas com os braços de quem as amanhava, elas próprias acabaram cemitérios de si próprias, na aridez do abandono, no peso sepulcral da terra que não é mexida.

Só as silvas vicejam. Do comboio de meios bilhetes, onde ninguém viajava com menos de 65 anos, vá lá saber-se porquê, saíam velhos que ninguém esperava nos apeadeiros e seguiam em passo incerto para as casas feitas, quiçá, com as poupanças da emigração, agora mausoléus de vivos, no prazo que ainda lhes resta, que em tempos foram orgulho das economias feitas lá fora.

As retretes dos caminhos-de-ferro chamam-se agora Senhoras, do lado esquerdo, e, do lado direito, Homens. Ainda não tinha cinco anos quando a minha mãe confirmou que eu já sabia ler. Foi quando lhe disse que sabia o nome da estação onde o comboio se abastecia de água e lenha, apontando com o dedo: Retretes.

A Quinta da Ribeira dos Abutres virou Aldeia de S. Sebastião no tempo do salazarismo, benefício pio que ao regime ficou de graça e tornou devedora a povoação. Caducada a dívida, ou por economia, no apeadeiro figura hoje apenas o topónimo Aldeia, isento da santidade e do patrono.

A seguir é Vilar Formoso. Os bancos já não são de madeira como os dos jardins, são de pano, com imensas nódoas, mais confortáveis, pouco frequentados. A máquina não pára nas subidas como outrora, quando era verde a lenha e molhada pelos fornecedores que a vendiam a peso.

As pessoas desapareceram e, sem elas, sem o ruído das noras, os chocalhos das cabras e o chiar dos carros de bois, vai morrendo o que resta da memória e da vida do que foi um alfobre de gente, o viveiro que povoou o litoral, a reserva de soldados da guerra colonial e a mão de obra que rumou à Europa.

No silêncio da terra que deixámos vemos a nossa própria voz a esgotar-se.

terça-feira, abril 29, 2008

Nova edição do Jornal "Miuzela Arriba"

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quinta-feira, abril 10, 2008

Veredas do contrabando, trilhos da sobrevivência


Quando da vida já percorremos parte substancial do caminho que nos coube e falta ainda o que ignoramos, assalta-nos a vontade de exumar da memória as pessoas que eram amigas dos nossos avós e foram nossas também.

Em meados do século passado o contrabando era um crime que tinha uma força policial dedicada para lhe pôr cobro. Não me refiro à candonga de divisas, de favores e de honra, que essa não tinha quem a refreasse e não lhe faltava quem a protegesse.

Menciono o contrabando de azeite ao dorso de machos que caminhavam lestos com dois odres, seguidos do dono, ou de pães de trigo amassados ao torno - «trigos espanhóis» -, comidos à mesa dos mais ricos ou dos remediados, em dias de festa canónica, e que chegavam de Espanha nas costas vergadas de aldeãs.

Eram cortes de pana que vinham de encomenda e cujo lucro se sumia na carga apreendida, os chocolates da Senhora das Candeias, as galletas, alpercatas, caramelos e outros bens escassos com que mulheres determinadas cruzavam a raia de Portugal até à casa do consumidor, que ora evoco.

Ver na luta pela sobrevivência mulheres de corpo tão débil e coragem tão forte era um apelo á conivência com as autoras do delito e à suspeita e animosidade para com a Guarda-fiscal. Como poderiam ser delinquentes a senhora Margarida e a sua cunhada Ana que iam a pé da Malhada Sorda até Almedilla para satisfazerem as freguesas e subsistir com os escassos ganhos do arriscado viver? E que dizer da Ti Esperança e da Ti Maria Josefa, que iam da Miuzela do Côa, e de tantas outras com o corpo alquebrado dos fardos e as alpergatas rotas pelas asperezas do caminho?

Também havia homens que andavam na candonga, vivendo os mesmos medos e angústias, sem lhes minguar o tempo para encherem de filhos as mulheres, próprias e alheias, mas fui sempre mais apiedado dos sacrifícios e tormentos das mulheres, convicto de que seriam nelas mais sofridos os espinhos.

Faziam seis léguas, calcorreando os trilhos da sobrevivência, com o temor dos guardas que lhes tolhiam o passo e lhes assaltavam as cargas. Iam em grupo e voltavam desgarradas dezenas de metros para que a infelicidade de umas as não atingisse a todas. Depois, lá estava a solidariedade das que escapavam a abonar as vítimas que teimavam no ramo a fazer pela vida.

Era assim, vergadas ao peso e ao medo, que viajavam a pé num raio de três ou quatro léguas que percorriam nos dois sentidos. Para irem mais longe, até à cidade da Guarda, onde eram mais endinheiradas as freguesas e substanciais as encomendas, iam as pobres contrabandistas no trama que tomavam no apeadeiro da Quinta da Ribeira dos Abutres, crismado como Aldeia de S. Sebastião depois de uma febre pia que percorreu o país, na Freineda ou no Noémi, após um sinal enviado do comboio de que não havia perigo, isto é, não iam guardas-fiscais a bordo.

Depois eram rápidas a repartir as cargas por passageiros conhecidos e a defendê-las de um eventual assalto policial que podia surgir mais adiante. Nem sempre venciam as contrabandistas, às vezes ganhavam os guardas surgidos noutro apeadeiro que confiscavam a mercadoria e indagavam quem era o dono perante uma carruagem de mudos. Se tudo corria bem, quando o comboio abrandava a marcha, a duas ou três centenas de metros da estação da Guarda, rolavam as cargas bem acondicionadas para uns lameiros onde iriam depois procurá-las.

Era neste jogo do gato e do rato, um jogo de que dependia a sobrevivência das contrabandistas e dos guardas-fiscais, que circulavam as mercadorias e se respondia às urgências de uma economia de subsistência e à ineficácia dos circuitos comerciais.

Despachados os artigos e arrecadada a paga, esperava-as o caminho inverso, a passagem por casa, onde havia trabalhos domésticos em atraso, e, de novo, com um parco farnel que tragavam em andamento, lá voltavam aos trilhos bem conhecidos, labirintos que em noites de Lua Nova só as mais experientes atinavam. E o cuidado que era preciso ter para evitar tropeções nas pedras largadas na última passagem ou nas gestas atadas para que nelas esbarrassem os guardas e, quantas vezes, por mor disso, nelas se estatelavam as próprias.

Eram ásperos os trilhos do caminho, tanto quanto os da vida que lhes coube, a epopeia sem alternativa e o destino que o instinto de sobrevivência e a geografia lhes marcaram. Ainda hoje sinto os beijos meigos dessas mulheres que me confiavam o segredo do esconderijo das cargas, detrás da lenha do palheiro dos meus avós, e me deixavam a colocar molhos de vides para melhor as dissimular enquanto repunham as forças com meio trigo da Miuzela, uma posta de bacalhau frito e meio quartilho, antes de perscrutarem fardas nas redondezas, recuperarem as cargas e retomarem a marcha.