O caminho-de-ferro da minha infância
Da estação da Guarda, às 13H02, sai o comboio que, após 43 minutos, à tabela, mostra os belos azulejos da estação de Vilar Formoso, povoação onde a Europa começa a ser Portugal e donde, em tempos de emigração maciça, se procuravam trilhos próximos que permitissem o salto para França na fuga à miséria e à polícia.
Na última sexta-feira de Março viajei nesse comboio repetindo um trajecto habitual da infância e da juventude, arquivadas ainda na memória as curvas dos carris e a orografia do terreno que os bordeja.
As casas parecem-me agora mais pequenas porque os olhos já não vêem como então e a escala decerto se alterou. As pessoas, não as que conheci, mas outras que as deviam ter substituído, sumiram-se com o tempo ou, naturalmente, refugiaram-se noutras paragens.
As terras ficaram, não conseguiram fugir das pedras que as prendem para não abalarem, fazendo-se ao caminho como as pessoas que lhes davam vida. Estão agora mais secos os pastos e abandonados os campos. Nos meus tempos de criança havia gente em todo o lado, pessoas que se reconheciam à vista desarmada, animais que obedeciam à voz do dono, vizinhos a quem recorrer em momentos de aflição ou necessidade.
Agora é o silêncio a pontuar a linha do horizonte, algumas gestas a romper por entre as pedras, um ou outro pinheiro onde ia jurar que houve castanheiros e carvalhos, silvas onde já vicejou o milho e donde desapareceram os tojos e o rosmaninho.
Gata, Vila Garcia, Vila Fernando e segui o rio Noémi, a ribeira da minha infância, com o olhar ansioso de quem escava a memória à procura de recordações. A ribeira levava paradas as águas neste princípio da Primavera, alheia ao equinócio recente e à morte que lhe levou os peixes e as redes. Tentei ouvir a água que saltava as penedias e polia as pedras mas a janela devolvia-me silêncio. Tentei com a porta aberta, depois do Rochoso e da Cerdeira, na Miuzela e no apeadeiro do Noémi. O silêncio mantinha-se e a água cristalina que quis recordar foi substituída por um líquido espesso, de cor baça, à espera de dias de canícula que o capturam em charcos, primeiro, e o secam a seguir.
Onde havia poldras há agora pontões. Outrora ficavam submersas aquelas, durante as chuvas, agora servem os últimos para evitar o declive do leito esculpido pelas águas.
Na Miuzela ainda vi a veiga que foi dos meus avós, nesga de terra donde desapareceu a nogueira e que, decerto, já não produz batatas. Estava abandonada, não sei se tem dono, préstimo já não tem com certeza. Estas tiras de terra, junto à ribeira, alimentavam gente ou talvez fossem as pessoas que ali se consumiam lentamente na ilusão de que eram os campos que as sustentavam.
Os amieiros não tinham folhas, por ser tempo da caducidade ou por mor de moléstia que lhes deu, não sei dizer, talvez aquele líquido que escorre os tenha condenado, mas ainda se perfilam nas duas margens a indicar o trajecto quando, daqui a uns dias ou meses, a água ou o que quer que a substituiu de todo se evaporar.
Os moinhos desmoronaram-se por falta de serventia. Minguou-lhes o grão e o moleiro, faltou-lhes a água que fazia rodar as mós, e foram ruindo tombados pelos anos e pelo abandono.
Os lanchais a perder de vista têm hoje as gestas que os padeiros da Miuzela e os oleiros da Malhada Sorda não deixavam crescer. E desapareceram as hortas. Não foram para as sepulturas com os braços de quem as amanhava, elas próprias acabaram cemitérios de si próprias, na aridez do abandono, no peso sepulcral da terra que não é mexida.
Só as silvas vicejam. Do comboio de meios bilhetes, onde ninguém viajava com menos de 65 anos, vá lá saber-se porquê, saíam velhos que ninguém esperava nos apeadeiros e seguiam em passo incerto para as casas feitas, quiçá, com as poupanças da emigração, agora mausoléus de vivos, no prazo que ainda lhes resta, que em tempos foram orgulho das economias feitas lá fora.
As retretes dos caminhos-de-ferro chamam-se agora Senhoras, do lado esquerdo, e, do lado direito, Homens. Ainda não tinha cinco anos quando a minha mãe confirmou que eu já sabia ler. Foi quando lhe disse que sabia o nome da estação onde o comboio se abastecia de água e lenha, apontando com o dedo: Retretes.
A Quinta da Ribeira dos Abutres virou Aldeia de S. Sebastião no tempo do salazarismo, benefício pio que ao regime ficou de graça e tornou devedora a povoação. Caducada a dívida, ou por economia, no apeadeiro figura hoje apenas o topónimo Aldeia, isento da santidade e do patrono.
A seguir é Vilar Formoso. Os bancos já não são de madeira como os dos jardins, são de pano, com imensas nódoas, mais confortáveis, pouco frequentados. A máquina não pára nas subidas como outrora, quando era verde a lenha e molhada pelos fornecedores que a vendiam a peso.
As pessoas desapareceram e, sem elas, sem o ruído das noras, os chocalhos das cabras e o chiar dos carros de bois, vai morrendo o que resta da memória e da vida do que foi um alfobre de gente, o viveiro que povoou o litoral, a reserva de soldados da guerra colonial e a mão de obra que rumou à Europa.
No silêncio da terra que deixámos vemos a nossa própria voz a esgotar-se.
Na última sexta-feira de Março viajei nesse comboio repetindo um trajecto habitual da infância e da juventude, arquivadas ainda na memória as curvas dos carris e a orografia do terreno que os bordeja.
As casas parecem-me agora mais pequenas porque os olhos já não vêem como então e a escala decerto se alterou. As pessoas, não as que conheci, mas outras que as deviam ter substituído, sumiram-se com o tempo ou, naturalmente, refugiaram-se noutras paragens.
As terras ficaram, não conseguiram fugir das pedras que as prendem para não abalarem, fazendo-se ao caminho como as pessoas que lhes davam vida. Estão agora mais secos os pastos e abandonados os campos. Nos meus tempos de criança havia gente em todo o lado, pessoas que se reconheciam à vista desarmada, animais que obedeciam à voz do dono, vizinhos a quem recorrer em momentos de aflição ou necessidade.
Agora é o silêncio a pontuar a linha do horizonte, algumas gestas a romper por entre as pedras, um ou outro pinheiro onde ia jurar que houve castanheiros e carvalhos, silvas onde já vicejou o milho e donde desapareceram os tojos e o rosmaninho.
Gata, Vila Garcia, Vila Fernando e segui o rio Noémi, a ribeira da minha infância, com o olhar ansioso de quem escava a memória à procura de recordações. A ribeira levava paradas as águas neste princípio da Primavera, alheia ao equinócio recente e à morte que lhe levou os peixes e as redes. Tentei ouvir a água que saltava as penedias e polia as pedras mas a janela devolvia-me silêncio. Tentei com a porta aberta, depois do Rochoso e da Cerdeira, na Miuzela e no apeadeiro do Noémi. O silêncio mantinha-se e a água cristalina que quis recordar foi substituída por um líquido espesso, de cor baça, à espera de dias de canícula que o capturam em charcos, primeiro, e o secam a seguir.
Onde havia poldras há agora pontões. Outrora ficavam submersas aquelas, durante as chuvas, agora servem os últimos para evitar o declive do leito esculpido pelas águas.
Na Miuzela ainda vi a veiga que foi dos meus avós, nesga de terra donde desapareceu a nogueira e que, decerto, já não produz batatas. Estava abandonada, não sei se tem dono, préstimo já não tem com certeza. Estas tiras de terra, junto à ribeira, alimentavam gente ou talvez fossem as pessoas que ali se consumiam lentamente na ilusão de que eram os campos que as sustentavam.
Os amieiros não tinham folhas, por ser tempo da caducidade ou por mor de moléstia que lhes deu, não sei dizer, talvez aquele líquido que escorre os tenha condenado, mas ainda se perfilam nas duas margens a indicar o trajecto quando, daqui a uns dias ou meses, a água ou o que quer que a substituiu de todo se evaporar.
Os moinhos desmoronaram-se por falta de serventia. Minguou-lhes o grão e o moleiro, faltou-lhes a água que fazia rodar as mós, e foram ruindo tombados pelos anos e pelo abandono.
Os lanchais a perder de vista têm hoje as gestas que os padeiros da Miuzela e os oleiros da Malhada Sorda não deixavam crescer. E desapareceram as hortas. Não foram para as sepulturas com os braços de quem as amanhava, elas próprias acabaram cemitérios de si próprias, na aridez do abandono, no peso sepulcral da terra que não é mexida.
Só as silvas vicejam. Do comboio de meios bilhetes, onde ninguém viajava com menos de 65 anos, vá lá saber-se porquê, saíam velhos que ninguém esperava nos apeadeiros e seguiam em passo incerto para as casas feitas, quiçá, com as poupanças da emigração, agora mausoléus de vivos, no prazo que ainda lhes resta, que em tempos foram orgulho das economias feitas lá fora.
As retretes dos caminhos-de-ferro chamam-se agora Senhoras, do lado esquerdo, e, do lado direito, Homens. Ainda não tinha cinco anos quando a minha mãe confirmou que eu já sabia ler. Foi quando lhe disse que sabia o nome da estação onde o comboio se abastecia de água e lenha, apontando com o dedo: Retretes.
A Quinta da Ribeira dos Abutres virou Aldeia de S. Sebastião no tempo do salazarismo, benefício pio que ao regime ficou de graça e tornou devedora a povoação. Caducada a dívida, ou por economia, no apeadeiro figura hoje apenas o topónimo Aldeia, isento da santidade e do patrono.
A seguir é Vilar Formoso. Os bancos já não são de madeira como os dos jardins, são de pano, com imensas nódoas, mais confortáveis, pouco frequentados. A máquina não pára nas subidas como outrora, quando era verde a lenha e molhada pelos fornecedores que a vendiam a peso.
As pessoas desapareceram e, sem elas, sem o ruído das noras, os chocalhos das cabras e o chiar dos carros de bois, vai morrendo o que resta da memória e da vida do que foi um alfobre de gente, o viveiro que povoou o litoral, a reserva de soldados da guerra colonial e a mão de obra que rumou à Europa.
No silêncio da terra que deixámos vemos a nossa própria voz a esgotar-se.