Natal
Quando eu nasci, a quatro dias do solstício de Inverno do ano de 1942, ia a meio a guerra que grassava na Europa e alastrava pelo mundo, não havia Natal na casa dos pobres. E pobres eram quase todos, também aqueles que os mais pobres diziam ricos por o serem menos.
A guerra, não aquela que a Senhora de Fátima dissera à Lúcia que ia acabar mas a seguinte, mais devastadora, que nenhuma delas (a Senhora de Fátima ou a Lúcia) sabia então que eclodiria mais tarde, dizimava nações e judeus na orgia anti-semita de renascidas rivalidades tribais herdadas pelo Império Romano, com erros de tradução, e na volúpia de interesses económicos que eu desconhecia.
Não havia de facto Natal embora eu só o pudesse saber alguns anos depois numa aldeia muito mais pobre onde não ia o Menino Jesus por não ter onde deixar as prendas, dado andarem descalços os meninos e não terem as casas chaminé por onde descer. Em minha casa eram os meus pais que o substituíam comprando alguma roupa de que os filhos andassem precisados, guloseimas e, às vezes, um carrinho de corda no meu sapatinho e bonecas nos das minhas irmãs.
Os meninos sabiam que era Natal − talvez o fosse noutras localidades… −, por ouvirem dizer em casa e na catequese e por verem os anjos, na igreja e na escola, pendurados em fios, a fazerem voo picado sobre os presépios. E eram bonitos os presépios porque eram coloridos os músicos da banda, os camelos e os reis magos, as ovelhas e o cão, e o burro e a vaca que, à falta de outra energia, aqueciam S. José, a Virgem e o Menino, saídos todos da paciência e perícia de um oleiro.
Nas casas, o vento e o frio entravam pelos buracos das paredes e fisgas da telha vã levando chuva ou neve que se fundia por entre o fumo da lenha húmida enquanto as fonas caíam na mesa “de preguiça” que, girada a cravelha, desencostava da parede rodando as dobradiças e equilibrando-se na única perna que a nivelava. Era ali que fumegava a sopa e as parcas vitualhas que chegavam à mesa dos pobres onde o Natal não ia.
Na cidade havia polvo seco, a partir de Novembro, dependurado do tecto das mercearias e enormes peixes de bacalhau da Noruega que as pessoas não imaginavam ser um país mas sabiam os merceeiros que a referência à origem valorizava a mercadoria. Mas quem podia almejar tais iguarias com o jornal, quando o havia, a oito mil réis (oito escudos) os homens e a cinco as mulheres, para arranjar pão que os garotos, que nasciam como cogumelos, logo devoravam.
No solstício de Inverno era o frio que comandava a tosse e o catarro, trazia as amigdalites e a febre e substituía o Natal de outras paragens pelo chá de cidreira, a escaldar, e a enxerga que amparava o corpo. A fé exigia orações mas à força do hábito as pessoas balbuciavam-nas como quem fala só, sem saber porquê.
A ausência de Natal não impedia a liturgia e as orações. Diz-me a observação que a fome faz bem à alma, desperta a piedade e aproxima as pessoas do divino, mas ainda hoje me interrogo como podiam os pobres agradecer a refeição que não lhes matava a fome e, algumas vezes, era a fome que os matava a eles.
Celebrar uma festa, seja pelo nascimento de um Deus ou de um filho, exige comida para aconchegar o estômago e líquidos capitosos que soltem a língua e o regozijo e dêem às reuniões o júbilo que o estômago vazio e a sede indeferem.
Naquele tempo, nas aldeias mais pobres da Beira Alta, disse-o há pouco e já o repito, não havia Natal. Só no calendário. As crianças andavam descalças sobre palha, ouriços e folhas que apodreciam na rua para adubo dos campos, sempre avaros a produzir, e recolhiam a casa a tiritar de frio sem que à mesa notassem a mais leve suspeita do nascimento de algum Deus.
Com as senhas de racionamento a não poderem ser levantadas pelos pobres, por falta de dinheiro, lá iam os géneros para a candonga enquanto os infelizes se resignavam à sorte que lhes cabia. Na missa o padre José Dâmaso recordaria a protecção divina que confiou Portugal ao homem providencial que nos livrou da guerra e punha as pessoas a rezar para que Deus desse a Salazar vida longa e o iluminasse com a sabedoria. Só o primeiro pedido foi atendido mas, nessa altura, ninguém o adivinhava. Nem adivinhava, tão-pouco, que, tendo-nos livrado dessa guerra – como dizia o padre Dâmaso –, nos reservaria outra, mais adiante no tempo.
Hoje, quando regresso à minha Beira natal recordo os meninos pobres da aldeia onde não volto com medo de ainda achar aquela fome que vi nos olhos dos que não comiam, com remorso de ter comido, com vergonha da sorte que me cabia.
Anos mais tarde despovoava-se o país de homens, sangrado na loucura da Guerra Colonial e na vaga da emigração clandestina, para fugirem à fome uns, para fugirem à guerra e à fome outros, enquanto as mulheres mantinham as terras a dar o que era possível e punham os filhos a estudar, numa lenta e inexorável transformação que mudaria a face de Portugal. Tinham-se alterado os costumes quando a fome se afastou e no sítio dos presépios da minha infância começaram a surgir árvores de Natal e prendas em papel colorido trazidas pelo Pai Natal em trenós puxados por renas.
Naqueles anos não havia Natal porque a pobreza o não permitia. Faltou-lhe depois o afecto que unia as pessoas e o vagar que dá tempo às celebrações e aos rituais. Antes não era por falta de fé ─ tão parcas eram as vitualhas que as pessoas enganavam a fome a cuidar da alma ─, era por falta de posses para fazer a festa. Agora, vai deixando de ser pretexto para os encontros de família à medida que as pessoas aderem a novas liturgias nas catedrais do consumo e se vão desinteressando do nascimento do Deus que lhes ensinaram.
Do Natal que foi nos sítios onde o havia e do que não era nas localidades onde não chegava resta a memória dorida de um país cujo progresso estava em sintonia com a imobilidade das figuras do presépio.
Revista de Natal - Jornal do Fundão, 20-12-2007