Abril: Um eterno futuro
O 25 de Abril foi o ponto final num passado de expropriação da liberdade; foi o momento criador de uma autêntica cidadania; foi o acto fundador da nossa contemporaneidade com a Europa e o mundo.
Contudo, as comemorações do 25 de Abril já pouco mais são que um ritual, com cada vez menor vivência cívica. Passados trinta e dois anos sobre a data em que “emergimos da noite e do silêncio”, regressou a desilusão, a angústia e o desespero, a falta de confiança e de esperança no futuro, a falência dos valores e ideais, a par do descrédito do sistema político e do reaparecimento do «sebastianismo» na vida política nacional. Será que Eduardo Lourenço terá razão quando fala da total ausência de interesse dos portugueses pela «ideia de Portugal» que tenha qualquer conteúdo além do da sua representação”?
É certo que o regime democrático se encontra consolidado e os direitos e liberdades fundamentais estão consagrados no ordenamento jurídico e, para muitos, isso significa a melhor homenagem ao 25 de Abril. Contudo, não parece menos certo que o estado de espírito dos portugueses será, também, resultado de um propósito deliberado de amnésia história por parte de uma classe política, mais interessada em reduzir a democracia à sua componente representativa e em esquecer o valor central da cidadania. E sem esta a democracia estará amputada do seu elemento fundamental legitimador.
Ainda assim, o poder simbólico do 25 de Abril vai resistindo aos anos, porque ele lançou a semente dos direitos políticos e sociais e autonomizou a consciência crítica de muitos portugueses, que não têm esmorecido na exaltação pedagógica dos seus autênticos valores e ideais.
Nunca será de mais todo o esforço para não deixar apagar a memória do Portugal de antes de Abril: do Portugal amordaçado por quarenta e oito anos de repressão violenta, prisão arbitrária, humilhação, tortura, degredo e assassínio dos opositores políticos; do Portugal de miséria e analfabetismo, de emigração clandestina para sobreviver, onde se fazia fila para comprar leite e pão, a mulher não tinha lugar na sociedade e a vida pessoal era devassada; do Portugal em guerra com povos irmãos durante treze anos, onde se exauriram gerações sucessivas de jovens portugueses e africanos; do Portugal isolado, condenado e humilhado internacionalmente.
Do mesmo modo, é imperioso lutar contra o esquecimento daquilo que foi uma gesta persistente, simultaneamente dramática e heróica, de rebeliões militares, tentativas revolucionárias, levantamentos operários, lutas camponesas, combates sindicais, movimentos culturais, greves académicas, manifestações estudantis e outras formas de resistência e contestação ao regime, que foram transmitindo até Abril de 1974 ecos gratificantes e esperançosos de revolta e insubmissão que o regime nunca conseguiu de todo calar. Muito mais que uma acção isolada de capitães insubordinados, o 25 de Abril foi a expressão culminante das aspirações de Liberdade do Povo português, e ignorar isso será cortar as raízes ao Portugal livre e democrático que então renasceu.
Não é menos importante aprender com a história, procurar entender como se chegou à ditadura e porque razão esta durou quase cinco décadas. Trocando o ideário liberal e progressista do republicanismo pelo nacionalismo e pela crença nas virtudes de uma «ditadura de reformas» ou de um «governo nacional extraordinário» largos sectores republicanos esqueceram a liberdade e sonharam, sobretudo, com uma nova ordem. Mesmo entre os mais conscientes dos autênticos valores democráticos, muitos houve que viram na ditadura a evolução natural da República, de liberal a corporativa, de «desordeira» a ordeira», de desagregadora das forças nacionais e políticas a agregadora, numa lógica de proclamada e formalizada «União Nacional». Numa altura em que se apela ao compromisso político é oportuno lembrar que o salazarismo foi o resultado de um compromisso entre várias forças políticas, incluindo nestas algumas correntes republicanas. Todas queriam reconciliação nacional, governos de competência, estabilidade política e ordem pública.
Como muito bem lembra José Gil, “a crise portuguesa assenta, na sua génese, numa preocupante falta de memória”. “Tudo é nevoeiro, sombra branca, preconceito, silêncio, complexo e trauma, que não deixa inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista”. Esta talvez seja a principal causa dos nossos problemas, aquela onde radica a vã esperança providencialista inibidora da confiança própria para enfrentar os desafios.
A história ensina que não há futuro fora da democracia. É fundamental, pois, guardar a memória de Abril, fazer dela uma exigência permanente de melhor democracia, de mais cidadania, de maior progresso e justiça social, promover a pedagogia dos seus valores e ideais, confrontando, apesar das dificuldades do presente, o Portugal da “apagada e vil tristeza” com o Portugal da Liberdade.
Porque só com Abril Portugal será futuro.
Monteiro Valente