O Emílio foi a enterrar no dia de Páscoa
Sábado à noite, depois da tarde passada com familiares dos dois
lados da fronteira, após o almoço anual da Família Barroco, o Francisco Beirão
telefonou-me a anunciar a morte do Emílio. O funeral seria no domingo, às
16H00. Em Badamalos, naturalmente, onde vivia desde o regresso de Angola na
leva de retornados.
Há mais de um ano que não via o meu afilhado, um amigo mais
velho que me quis para padrinho do casamento com a Justina, faria 50 anos em
setembro próximo. Na véspera, o Mário Bárbara, do meu curso de professor, que
por ali se fixou a dar aulas a garotos, quando os havia, e a beber uns copos,
que ainda há, já me tinha alertado para o fim que se aproximava quando
ocasionalmente nos encontrámos em Almeida.
A doença que soe ser longa foi para o Emílio breve, abrir e
fechar a cavidade abdominal donde as metástases já haviam migrado para órgãos
nobres. Antes isso, que o declínio e o sofrimento podem ser um refrigério para
a alma mas desolam o próprio e os amigos.
Lembrei-me dos tempos de criança e da forma como os mais
velhos me estimavam. Foi com o Sérgio, primo e também afilhado de casamento,
que padeceu do mesmo mal e foi a enterrar no dia 7 de outubro de 2012, também
num dia de chuva, que aprendi a beber vinho e a fumar. A esse tratava-o por
professor. O Emílio era um dos garotos nascidos no primeiro lustro da década de
trinta do século que foi, na Miuzela do Côa. Com eles aprendi a amar a noite e
a liberdade, tropeçando nas ruas enlameadas na escuridão das noites sem lua, a
gritar obscenidades, quando caía, para parecer adulto. Foi com eles, jovens
inteligentes que fizeram a 4.ª classe, por não poderem ir mais além, que
aprendi o que a escola e a família não ensinam.
O Emílio morreu mesmo na Páscoa cristã, a coincidir com o
mito, a despedir-se da vida no fim da sexta-feira e a ser inumado no domingo,
ao fim do dia, por entre a chuva fria e o vento forte que fustigava a multidão
de amigos que ali foram despedir-se.
Quando cheguei a Badamalos, ido de Almeida, parei junto do
restaurante que fora dele. Bem sabia que estava fechado. Fora ali que fizera
pela vida, deixando a Justina a tomar conta quando um freguês solicitava o
táxi. Olhei com saudade a casa onde me acolhia com imensa amizade e desvelo,
servindo-me os melhores petiscos e fazendo questão de abrir velhas garrafas de
vinhos de marca. Depois fui àquela velha igreja onde há quase 50 anos o
sacristão insistiu em vão para que o padrinho se ajoelhasse junto à madrinha, a
Augustinha.
Também choveu no dia do casamento. O fatinho era novo e
único, poupado para dias de festa, que 1750$00 de vencimento ilíquido,
reduzidos a 1612$00, não consentiam maior guarda-roupa. Tive o azar da chuva. Nunca mais
a esqueci nem o afilhado deixou que a esquecesse.
Depois da missa, nada se fazia sem ela, foi servido o almoço
onde os padrinhos tinham lugar de destaque. Tudo correu bem. A felicidade dos
noivos era o reverso do rosto da Justina e dos três filhos que tiveram neste
domingo, último dia do mês de março.
A chuva do funeral tornou mais lúgubre a despedida. A do
casamento foi uma bênção para o fígado. O senhor padrinho tinha os sapatos
rotos e a chuva transformou as ruas de Badamalos num lamaçal que foi preciso
atravessar até ao salão de baile, esmeradamente lavado e seco. Mandava a
tradição que os senhores padrinhos abrissem o baile ainda que algum não
soubesse dar um único passo de dança. E era o caso.
Partiram os padrinhos de mão dada para o centro do salão
perante os olhares e a pressa dos jovens que pretendiam divertir-se. Mal
avançaram os senhores padrinhos, pegadas de tamanho desigual iam alternado no
imaculado chão, esfregado durante dias, perante a estupefação, primeiro, e
sonoras gargalhadas, depois, com a miséria posta à mostra pelas meias
encharcadas que saíam dos buracos dos sapatos do padrinho. Com a calma que a
situação recomendava, levantei os pés, alternadamente, exibi os buracos e
absolvi a madrinha envergonhada, enquanto chamei todos para a dança.
Foi o momento hilariante que divertiu a Miuzela e Badamalos,
que foi contado imensas vezes e todos os anos recordado sempre que eu aparecia.
Que diferença entre o percalço de sapatos rotos, que meias solas remendavam, e
meias molhadas, que logo secariam, e um funeral de um amigo que deixa viúva,
filhos e amigos já sem lágrimas para chorar enquanto a chuva teimosamente nos
acompanhou ao cemitério onde já poucos faltam de uma geração que desaparece e
de aldeias que vão, também elas, morrendo com os seus últimos habitantes.
A morte é a vida que atingiu o prazo. Emílio Correia Júlio,
nascido a 9 de maio de 1935, partiu no dia Páscoa de 2013. Faz-me falta e é
mais um que me deixa. Raio de vida.
3 Comentários:
Caro Carlos Esperança,
Como não consigo publicar comentários no blog "Ponte Europa" sirvo-de deste para lhe responder à questão que me colocou como resposta a um comentário meu crítico ao seu modo de votar.
Pergunta-me que fazer para não ser enganado.
Digo-lhe que para evitar uma alta probalidade de ser enganado deve:
1)Evitar "fulanizar" o voto.
2)Votar no seu partido ou naquele que ideologicamente está mais próximo na defesa do tipo de sociedade que também defende.
3)Quando mesmo esse partido seu ou de sua simpatia anda em deriva ou segue linha diferente da sua, deve pensar bem se é melhor votar noutro indo atrás de "fulano" doutra ideologia só porque parece "ter ideias", "ser íntegro", "ter um bom programa eleitoral" ou outra caracteristica que lhe agrada.
4)Em caso de dúvida em elevado grau o melhor é preferível votar em branco que sentir-se enganado depois.
Voltando a Eanes. Considera íntegro o seu comportamento ao servir-se da cadeira de Presidente para criar um partido contra o PS de Soares porque este não se deixava alinhar politicamente por ele?
Talvez levado, ingenuamente, pelo rigoroso, severo e austero cumpridor do código militar de Eanes e desiludido pelo governo "direitista" de Soares, alinhou pelo PRD. Que pensa hoje acerca de quem tinha a visão certa e a História deu razão?
Eu percebo, penso que percebo, o problema do Carlos visto que também eu pressinto que vou ter o mesmo problema.
Mas aguardo, pois a inseguridade e hesitação pode levar a pôr pé em falso que pode fazer virar tudo no bom sentido.
1:17 da manhã
Obrigado, José Neves.
7:06 da tarde
Escreves bem mas não passas de um presumido de aldeia.
Nunca pares de tomar os medicamentos
Zé de Porto de Ovelha
10:48 da manhã
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