A Procissão da Senhora da Conceição (Crónica)
Para animar a fé e variar a liturgia eram frequentes as festas canónicas que esgotavam os ovos, o açúcar e a capacidade de endividamento na mercearia da aldeia.
A missa iniciava as festividades e prolongava-se com rituais e padres paramentados a rigor, vindos das paróquias vizinhas, e o sermão de um outro, contratado para enaltecer a santa e avivar a fé. O pregador subia ao púlpito e distinguia-se pela desenvoltura com que se exprimia, tanto mais apreciado quanto menos percebido, podendo confundir as virtudes e trocar os santos sem beliscar a fé ou pôr em risco os honorários.
Depois da missa a procissão percorria as ruas da aldeia com uma ou outra colcha nas janelas e mantas de farrapos garridas, que era pobre a gente e a intenção é que salvava.À frente iam os pendões, empunhados por braços possantes que contrariavam o vento, seguidos de bandeiras com imagens pias e anjinhos, apeados, de asas derreadas. A seguir viajavam alinhados os andores do Sagrado Coração de Jesus e de alguns santos que aliviavam o mofo e o abandono na sacristia. Por último vinha a estrela da companhia, a Senhora da Conceição, de comprovada virtude e milagres ignorados.
Os padres viajavam sob o pálio, conduzindo o arcipreste a custódia que exibia a hóstia consagrada, com acólitos a empunhar as varas.
Em meados do século que foi os cruzados gozavam ainda da estima de quem prevenia a salvação da alma e desconhecia a história das guerras religiosas. Assim, ladeando os andores, exultavam os garotos, meninos com uma faixa onde, a vermelho, se destacava a cruz e as meninas com uma touca que lhes escondia os cabelos e exibia uma cruz igual.
Depois dos padres e dos mordomos, orgulhosos dentro das opas, viajavam pelas ruas enlameadas as Irmandades. As Irmãs de Maria traziam o pescoço enfaixado com fitas azuis. Seguia-se a Irmandade do Sagrado Coração de Jesus com fitas vermelhas e, finalmente, as Almas do Purgatório com fitas roxas atrás de um estandarte que as anunciava, não fosse o diabo tomá-las como suas.
A cobrir a retaguarda a banda da Parada atacava música sacra enquanto os foguetes estalejavam no ar. A passo lento se o tempo convidava, ou mais apressados se a chuva fustigava, os crentes regressavam à igreja com deserções antecipadas a caminho de casa onde aguardavam as vitualhas.
Eram assim as procissões da minha infância percorrendo as ruas tortuosas da aldeia e os rectos caminhos da fé.
Carlos Esperança
Jornal do Fundão, ontem.
2 Comentários:
Mestre Carlos Encarnação,
obrigado por mais esta deliciosa reposição.Hoje, embora com mais alguns adereços, a situação não é muito diferente. Acrescentaria apenas que em algumas procissões, se aproveita o passeio dos venerados para os participantes trocarem os habituais abraços, de partir as costelas, por ser o momento de reencontro das longas ausências. Outros não resistem à tentação de fazer uns desvios à adega (a desidratação também mata) matar o vicio do cigarrito, ou aliviar águas. Resultado: É certo e sabido que o Pároco não dorme na procissão e no sermão mais próximo lá passa um raspanete dos antigos aos prevaricadores. O homem não percebe que aquilo não passa de um ritual. A propósito, o mestre não tem aparecido no praça alta! Porque será?
6:43 da tarde
Caro JSF:
Para além das suas palavras amáveis, que agradeço, devo informá-lo de que não me sinto com capacidade para tratar assuntos locais de que me encontro afastado.
É por isso que não escrevo no blog «Praça Alta» mantendo a colaboração permanente no jornal do mesmo nome, apesar de alguns piedosos protestos.
Mantenho colaboração assídua nos blogues Ponte Europa e Diário Ateísta.
Fica convidado para o lançamento do meu livro «Pedras Soltas» que terá lugar em Almeida, às 15H00 do dia 9 de Dezembro próximo.
Abraço.
Carlos Esperança
9:53 da tarde
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