Bom Ano Novo
O ano de 2005 ficará registado como um dos mais difíceis para os portugueses depois de 25 de Abril de 1974. A crise que o país tem vindo a atravessar atingiu um ponto culminante no ano que findou, pela convergência de factores de diversa ordem, nacionais e internacionais, agravada pelos sentimentos de desilusão, de suspeição e de descrença que minam a confiança e a esperança dos portugueses. Isto é particularmente preocupante porque arrasta consigo a falta de vontade para enfrentar e vencer a situação, comprometendo a saúde do próprio sistema democrático, visível no aumento do absentismo político.
Em situações idênticas no passado, os portugueses tiveram tendência a refugiar-se em categorias políticas em que era menos o presente concreto que era objecto de referências, que um passado ou futuro mistificado, para justificar a descrença nos destinos da Pátria, espelhando dessa forma a sua “total ausência de interesse pela «ideia de Portugal» ”, que tivesse “qualquer conteúdo para além da sua representação”, nas palavras de Eduardo Lourenço. Referimo-nos à tradicional cultura portuguesa do “sebastianismo”, em que se remete o destino do país para as mãos de ilusórios “salvadores da pátria”. Assim aconteceu no século XIX com o marechal duque de Saldanha e, no século passado, com Salazar, ambos dominando a vida política nacional durante cerca de meio século, com consequências trágicas para o país, e mais efemeramente, com Sidónio Pais, durante a primeira República, com efeitos igualmente dramáticos. Esta ideia providencialista que povoou no passado o imaginário dos portugueses foi o reflexo, sobretudo, da fraqueza da sociedade e da sua incapacidade de transformação, não logrando alcançar, em nenhum dos casos, outros desenvolvimentos que não fossem o maior atraso do país e o sacrifício fatídico das liberdades dos portugueses, sob a opressão de regimes autoritários ou ditatoriais.
Preocupantemente, passados trinta anos sobre o sonho de “inventar um outro destino para Portugal” esta idiossincrasia volta a dominar a vida política nacional. Confrontados com a grave crise que o país atravessa, os portugueses parecem de novo render-se aos rituais revivalistas do providencialismo ou do patriarcalismo, alienando a sua cidadania e transferindo para novos “salvadores” as responsabilidades que são de todos nós. Nada, contudo, de mais enganador. A história ensina-nos que toda a experiência política nacional personificada em figuras supostamente clarividentes, detentoras de soluções milagrosas para os problemas nacionais, redundou sempre no pior.
Basta de ilusões. Perante os desafios do futuro, o fundamental é fazer renascer o fulgor da alma portuguesa incentivando a mobilização da vontade colectiva nacional em torno da reinvenção da liberdade, da renovação da cidadania, da reabertura de futuros possíveis e da revalorização do ideal da Pátria que somos todos nós. Porque os ideais sempre foram as alavancas do progresso da humanidade. Só assim continuaremos a ser um povo que “é já um futuro e vive do futuro que imagina para existir”, recorrendo novamente a Eduardo Lourenço, aquele que é, porventura, a maior consciência crítica deste nosso tempo. E só assim poderemos sonhar com um Bom Ano Novo.
Monteiro Valente
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