Ao Tio Zé (José Afonso Brardo)
A vida é isto, esta passagem breve de Eros a Tanatos, a viagem de uma aldeia da Beira Alta, onde poucos sobreviviam às maleitas e à água inquinada das fontes que secavam no Verão, para acabar em Lisboa carregado de anos e saudades, a ver todas as manhãs aquela estátua de santo António que o tempo se encarregou de tornar menos feia.
Eu já esperava que o octogenário se finaria antes de nova visita. Vi como as forças lhe faltavam naquela cadeira onde, há um mês, ainda cultivava sonhos e afectos e desfiava memórias. Era uma cabeça a quem o corpo já desobedecia, com olhos muito abertos para levar consigo a imagem do primeiro sobrinho que agora perdeu o último tio. Que raio de vida, tio. Que sorte a nossa. Que injustiça. Não mais passearemos na Avenida de Roma nem tomaremos café na Suprema.
Recordo as duas últimas vezes que estivemos juntos. A penúltima foi na Miuzela natal onde lhe descerraram o retrato e lhe disseram umas palavras para o comoverem. Foi a última vez que voltou à terra onde nasceu, que regressou aos lugares da infância e ao lugar onde deixa os pais que eram meus avós, Paulo e Anunciação.
Vem-me à memória o avô Paulo, excomungado por ter comprado a vinha do passal ao representante da República, obrigado a pagá-la segunda vez ao pároco para levantar a excomunhão que permitiu ao Tio Zé a entrada no seminário e o percurso para doutor.
Recordo as cartas com que jogávamos à sueca na adega, as pescarias que fazíamos no Côa e as discussões de quem escolheu lados diferentes na trincheira das ideias sem a mais leve beliscadura nos afectos. Eu era o irmão mais novo – dizia-me –, parece que tinha vergonha de ser tio como se o sobrinho não se orgulhasse do parentesco.
Ficou tanto por dizermos, tio, nem ao menos me disse que queria ir para a Miuzela, vai para a terra onde casou, a terra é toda igual, não se encontra ninguém daquele lado. É deste, na memória dos que ficam, na saudade que dói, na tristeza que nos invade, que ainda será lembrado enquanto vivermos os que gostámos de si e choramos a partida.
Até amanhã, tio Zé, prefiro ir a Lisboa dizer-lhe o último adeus e ignorar o sítio para onde o levam. Quero recordá-lo onde viveu e conservá-lo na memória. À medida que me deixam fico com mais recordações para desfiar.
3 Comentários:
Os meus sentimentos à família.
10:00 da manhã
A terra não interessa o que perdura são as memórias e a saudade eterna do melhor homem que conheci e que por acaso é meu pai.
A filha Lídia
7:54 da tarde
Aproveito para agradecer à Miuzela, que estava sempre no coração do meu pai,todas as homenagens que lhe prestaram .
8:20 da tarde
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